domingo, 26 de abril de 2009

A crase

Na Língua Portuguesa, muitas pessoas têm dificuldade na aplicação da crase, e tenho visto pessoas de bom nível cultural cometendo esses erros, sobretudo em textos informais da internet, como blogs e orkut. Entrtanto, uma vez que se entende o fenômeno, a aplicação da crase se torna fácil, natural, e mesmo em casos mais complicados, a própria pessoa consegue sanar a dúvida por meio de raciocínios simples.

Muito desta dificuldade atribuo ao que chamo de Português apostilesco, ensinado em nossas escolas -- um estilo voltado à resolução de provas, que ao abordar o assunto enfatiza macetes e "pegadinhas", e se esquece de consolidar o conceito. O aluno, ou o ex-aluno que carrega esta lacuna em sua formação, deve se esforçar em escrever corretamente no dia-a-dia, e rapidamente verá como a crase "sai" naturalmente. Vamos a ela.

Para começar, eu diria que a crase não é um fenômeno da escrita, mas do pensamento que antecede a escrita, e que se manifesta no papel sob a forma de acento grave.

Chama-se crase a junção de duas letras -a. Arbitrou-se em nossa língua não escrever vogais dobradas, por isso não existem palavras com aa. Quando isto acontece, a união dos dois -a é indicada pelo acento grave (`), cuja única função em português, atualmente, é indicar a ocorrência de crase.

Antigamente, além da crase, o acento grave era usado para indicar que havia um acento agudo no radical de palavras derivadas que tivessem a sílaba tônica deslocada por um sufixo. Por exemplo, em "obviamente", a sílaba tônica é -men-, mas como na palavra original, "óbvio", o acento está no primeiro -o, escrevia-se "òbiviamente". A crase, por sua vez, é a união de duas vogais. Falando tecnicamente, portanto, o erro que se comete não é "no emprego da crase", mas no emprego do acento. A pessoa viu crase onde não tinha, e empregou o acento grave erroneamente.

Pois bem, a crase pode ocorrer em dois casos:

1º- Quando a preposição "a" antecede o artigo definido "a". Daí, escreve-se "à" (ou "às"). É o feminino de "ao".

2º- Quando a preposição "a" antecede a palavra "aquele" (pronome demonstrativo), ou uma de suas variações. O pronome contrai a preposição, e fica "àquele", "àquela", etc.

Nunca vi nem ouvi falar nada a respeito de uma possível alteração de pronúncia causada pela colocação do acento grave sobre uma vogal. Não é como o acento agudo, que transforma "e" em "é", "o" em "ó", e daí por diante. Poder-se-ia falar com uma voz mais grave, para fazer juz ao nome do diacrítico, mas eu, particularmente, sinto-me tentado a pronunciar "aa" quando leio um "à". Vejo algumas pessoas fazendo o mesmo, mas por puro idealismo, já que não há convenção formal a respeito. Em outras palavras, o erro no "emprego da crase" só se comete por escrito.

É necessária alguma prática na identificação das classes gramaticais para saber quando ocorre a crase - e daí empregar o acento grave apropriadamente.

É fácil saber quando aparece a preposição "a" em uma frase. Em geral, ela segue os verbos que rege, e é praticamente impossível usar um verbo com a preposição errada, uma vez que isto tira, ou muda radicalmente, o sentido do que se quer dizer.

Tomemos o verbo dar: você dá algo a alguém. "João deu o anel a Júlia". Se trocarmos a preposição, a frase muda de sentido: "João deu o anel de Júlia". Mudou o sentido da frase, e agora Júlia está puta com João. Júlia antes era núcleo do objeto indireto; virou complemento nominal do anel. Tem razão de não ter gostado.

Portanto, vimos como é fácil identificar o "a" preposição.

Quanto ao pronome demonstrativo, só um idiota não perceberia que há dois -a seguidos numa frase como "No fim de semana, fui a aquela praia." Ora, não se escreve "a aquela", mas "àquela". O resultado é "No fim de semana, fui àquela praia". Simples.

Então, afinal, qual a dificuldade no emprego do acento grave?

O problema reside no artigo definido. O artigo, não podendo ser núcleo de nada, cumpre sempre a função de adjunto adnominal. Sendo adjunto, não pode ser obrigatório. Porém, há situações em que o costume exige o emprego do artigo definido.

Nas aulas de Português apostilesco, reserva-se uma unidade inteira ao assunto "quando o 'uso da crase' é obrigatório" (o que vimos não ser lá muito correto, porque crase não se usa, ela simplesmente ''acontece''). Na realidade, o tema deste capítulo deveria ser "quando o artigo definido é indispensável." Ao deparar-se com a preposição "a", e sabendo se o artigo é indispensável, opcional, ou proibido, automaticamente se descobre se o acento grave será obrigatório, facultativo ou errôneo. Para concluir, vejamos alguns casos:

Sabemos que o artigo "a" somente define substantivos femininos. Portanto, nunca teremos crase antes de nome masculino. Dar qualquer coisa à João é errado. João é do gênero masculino, por isso só se pode dar as coisas a João.

Outro erro comum é "à ele". Erro duplo, porque ele é masculino, e porque não cabe artigo definindo um pronome pessoal -- ninguém diz "O ele está com fome." Da mesma forma, "Dizer à ela que isso e aquilo" não convém, porque se está colocando artigo onde não deve.

Substantivos próprios nunca são antecedidos por artigo. Por isso, seria errado "João deu o anel à Júlia", assim como o seria "Júlia devolveu o anel ao João". É um erro muito comum na fala de várias partes do Brasil, que induz ao erro na escrita.

Alguns nomes de lugares são precedidos pelo artigo, obrigando a crase, outros não. Veja os casos de Paris e França (faça você mesmo!).

Nas locuções adverbiais de tempo, mais especificamente, ao expressarem-se as horas, o acento grave nem sempre é obrigatório, veja: "Encontramo-nos às duas da tarde." -- "O encontro foi marcado para as duas da tarde." No segundo caso, a locução foi introduzida pela preposição "para", portanto só sobrou o -a do artigo. Repare neste último caso que, sem o artigo, a frase soaria estranha. E este é sempre o melhor indicador: se soar estranho sem o artigo, muito provavelmente este é indispensável.

Em breve posto uns exercícios sobre o assunto, prometo.

3 comentários:

  1. Rimas craseáticas
    Vai a volta da, crase há;
    Vai a volta de, crase pra quê?

    Em casa sem morador, crase é um horror;
    em casa com morador, crase, por favor.

    Antes de hora, crase agora;
    Antes de adjunto adverbial, crase não vai mal.

    Antes de nome de mulher, crase se quiser.
    Antes de pronome possessivo, usar crase é facultativo.

    Antes de moda, crase é...fogo.

    Alex Fabiani (www.tioalextextando.blogspot.com)

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  2. A crase não é tão difícil quanto parece. Há um método prático para saber se tal fenômeno ocorre. Basta pensarmos se o elemento que antecede a suposta crase exige "a" depois dele. Em seguida, nos perguntamos se o vocábulo posterior à suposta crase pede que um "a" o anteceda. Se o "a" for exigido pelas duas palavras (aterior e posterior), então ocorre a crase, a qual deve ser marcada pelo acento grave (`). Decorar não resolve o problema. Se entendermos que a crase é simplesmente a fusão de dois aa, conseguiremos usá-la corretamente. Mas, para não errar, a pessoa tem que estudar regência verbal e nominal. O hábito de boa leitura também nos ajuda a saber regência, pois nos acostumamos com o uso correto dos conectivos.

    (expressaoliberta.blogspot.com)

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  3. Gostaria de saber no caso: Dar aquela acordada/Dar àquela acordada.Tem crase ou não? O verbo dar nesse contexto é direto ou indireto???

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